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terça-feira, 10 de maio de 2011

SENÓIDE – Underground x Mainstream

Hoje o significado real do termo “underground” é confuso. Underground não é um lugar trash, perdido, pouco iluminado e sujo. Em geral, a cultura underground é a fonte geradora de quase tudo que depois se populariza.Nesse processo de transição, o impulso inicial vai se desgastando e o que acaba por chegar ao grande público é apenas uma idéia distorcida e superficial daquela original.

Da metade para o final dos anos 80, por causa da AIDS, da heroína, da música gótica, industrial, e da sensação apocalíptica em que vivia a juventude naquele período, nada foi mais sábio do que inverter completamente aquele cenário e celebrar um modo alternativo de perceber o mundo. Unindo elementos da Disco, Italo Disco e Electro - (gêneros que naquele momento já se associavam ao mainstream) - o House surgiu como o gênero genuinamente underground que se opôs à estética lúgubre que acontecia paralelamente na música.

Alguns dizem que a cultura da música eletrônica pós Acid House é puramente hedonista. Mas na verdade, num momento em que a morte estava bastante presente, as pessoas de mente mais aberta se cansaram de exaltar a tragédia, e se lançaram para um entendimento mais amplo da vida. Como na música do Deee Lite, “Good Beat”, de 1990: << Depending on how you see it, you cage your mind or you free it. Depending on how you see the times, the world divides or it closely binds. >> Mais do que isso, a cultura do House aparecia como alternativa para um público muito mais diversificado e menos preconceituoso que o do Rock – muitas vezes racista, machista e heterossexista.

C’HANTAL _ THE REALM (HARDFLOOR REMIX) _ 1990/1995

Alguns citariam a cultura Disco como precursora dessa atitude, mas poderíamos retroceder ainda mais; aos guetos do Jazz; até chegar à Paris boêmia do início do século vinte. A cultura do Acid House, ou cultura clubber, é a cultura Disco potencializada. Quem presenciou o Second Summer Of Love em 1989 viu o último suspiro de contraculturaque continua ressoando, mesmo enfraquecido, em 2011. Esse contexto social persiste até hoje, quase imutável depois de mais de vinte anos, e sem ser questionado. As gerações seguintes se acomodaram, e o escapismo que outrora era saudável tornou-se um vício coletivo.

Inevitavelmente, todo fenômeno contracultural, ao se desenvolver e alcançar um número cada vez maior de pessoas, vai proporcionalmente perdendo seu caráter original e se tornando o espectro daquele conceito inicial que impulsionou uma nova maneira de perceber o mundo, de interagir com as pessoas, de sentir a música.
O que atinge a grande maioria das pessoas é apenas a ponta do iceberg, a percepção superficial daquilo que originou o movimento.

Exatamente por causa disso as gerações mais novas descartam tão facilmente a cultura que as antecedeu.
A informação que chega aos adolescentes é superficial e significa quase nada para eles. Ao buscarem uma identidade própria, eles fazem com que a cultura se movimente rapidamente. Esse processo acontece desde os anos 60, quando a juventude se tornou a entidade geradora da cultura underground por excelência. De certo ângulo, isso é bastante renovador, por outro lado, se o movimento cultural antecessor for muito hermético, e em seu tempo coincidir com uma indústria cultural voraz, provavelmente uma parte da história será jogada ao esquecimento, e só será descoberta muitas décadas depois – o que acontece comumente.

Quase nunca mais usamos o termo “underground”, justamente porque, ano após ano, vemos essa cultura noturna e musical se popularizar por todo o mundo. Porém, mais do que nunca, paira no ar uma sensação de que todo comportamento gerado e consolidado pela música eletrônica a partir do Acid House desdobrou-se ao seu máximo, atingiu seu ápice, e acabou por diluir-se completamente, tornando-se um fenômeno totalmente absorvido pelo mainstream. O problema é que isso parece não incomodar boa parte dos profissionais do ramo. Talvez por não perceberem que quando a cultura chega nesse estágio ela se torna inerte e se esgota. Quanto menor o desejo de experimentar novos caminhos, mais escasso é o registro cultural contemporâneo. Indícios de que isso está acontecendo não faltam.

Até cerca de quinze anos atrás, dançar durante horas uma música que estava longe de se tornar uma fórmula era uma vivência ritualística bastante profunda para muitos. No auge daquele período, era possível experimentar voltar ao ponto inicial de um ciclo imensurável, sentir-se em uníssono com o universo, com o sobre-humano, etc. Essa imagem subjetiva certamente parecerá muito distante para aqueles que nunca presenciaram o início de um movimento cultural, ou àqueles cuja única referência é a cultura vigente, ou mainstream.

PSYCHICK WARRIORS OV GAIA (PWOG) _ EXIT 23 (RETURN TO THE SOURCE) _ 1989

Por um breve momento, a maioria das canções perdeu o sentido. Os hinos dos anos 60, 70 e 80 cediam espaço para uma música mais sensorial. Até Madonna, um símbolo da cultura de massa, percebeu o que estava acontecendo e descreveu algo similar na música “Bedtime Story” de 1994: << Today is the last day that I’m using words; They’ve gone out, lost their meaning, don’t function anymore .. >>

Essas percepções coletivas eram autênticas há alguns anos atrás. Mas, e hoje? As pessoas ainda parecem querer alcançar esse tipo de experiência, mas dessa vez, sem saber por que; algumas buscam repetir os mesmos gestos, a mesma euforia, imitar certos comportamentos. Vivem o simulacro de um tempo que já não mais existe. O que faz essas pessoas continuarem buscando, através do entretenimento, esse júbilo, essa alegria simulada e desmesurada? É pra fugir do que exatamente? Somos bombardeados por músicas quase iguais entre si, músicas que causam um impacto desproporcional num dia, e na semana seguinte são descartadas sem dó.

Qual o sentido de uma pista lotada de pessoas urrando por ótimos DJs, produtores e músicos, se de fato esse comportamento é quase irracional, uma manifestação do inconsciente coletivo onde o público festeja sem saber o quê, sempre acompanhando o resto do grupo que se comporta da mesma forma. Todos nós sabemos que, dependendo do público, qualquer música que o renomado DJ tocar será recebida da mesma forma, com o mesmo entusiasmo e euforia que qualquer outra música. Repare na velocidade em que a cena noturna perde o sentido quando é tratada como cultura de massa.

Obviamente, o novo sempre vem, e a culpa do que acontece hoje não é da música eletrônica, mas da comodidade de muitos profissionais que se aproveitam da ingenuidade do novo público, e priorizam bombar uma pista, perpetuando a velha fórmula em benefício próprio. Por outro lado, um público desinteressado faz com que seja praticamente impossível que bons DJs consigam abrir a mente dessas pessoas – o hiato entre DJ e pista às vezes é gigantesco.

INNER CITY _ PRAISE (THE FUTURE SOUND OF LONDON CONCEPTUAL MIX) _ 1992

Por causa da localização da cabine, a visão que o público tem do DJ geralmente é limitada – pouco se vê de seu corpo ou suas mãos. Então, por que razão esse público se posiciona de frente para o DJ, por todo tempo, como se estivesse vendo um cantor, um guitarrista, uma performance? É fundamental que cada um faça o que quiser numa pista democrática, porém se compararmos certos eventos atuais com as lendárias imagens de grandes clubes dos anos 70, 80 e 90, veremos as pessoas dançando espontaneamente em todas as direções - de costas para o DJ, de frente para as caixas acústicas, umas com as outras, sozinhas, em pares, dispersas, etc. Hoje parece que estamos em um show de rock, em um espetáculo, todos virados para a cabine “assistindo” o DJ - Se o BPM baixar muito, é capaz de começarem a acender os isqueiros.

Essas questões aparecem quando a música chega ao mainstream. Presenciamos o momento em que os DJs e produtores têm que optar entre se dedicar ao seu público, seleto e educado, ou reproduzir o mesmo cenário ad infinitum para os bandos inconscientes que surgem cada vez em maior número, um público desleal que se esquecerá de tudo na primeira oportunidade.

Grande parte da eletrônica se tornou dependente de uma plateia pouco interessada numa música realmente original, pessoas cujo único intuito é se divertir de uma maneira específica, imutável há anos, e que quase sempre considera descartável o trabalho dos profissionais. Uma parte dos artistas começa a ter consciência de como suas músicas vem sendo tratadas. Mas nem todos se preocupam com isso. Alguns devem se sentir cômodos com as novas regras da indústria da qual se submetem. Parece que muitos se contentam com o cenário atual e nem pensam em questionar o status quo.

Sem dúvida alguma vivemos um momento de transição, pois algumas mentes criativas, ao mesmo tempo em que tentam se desviar das referências de sempre, buscam no passado os conceitos que foram esquecidos pelo caminho, resgatando o que estava parcialmente oculto para engendrar o novo. Porém, tudo ainda está excessivamente atrelado a esse passado.

Sem querer subestimar ou menosprezar a diversidade musical histórica que está à nossa disposição e alcance,
o melhor que poderia nos acontecer agora é uma ruptura musical absoluta.

***

Perguntei a três profissionais da música se eles compartilham das mesmas impressões sobre a cultura noturna contemporânea.

Glaucia++ é DJ, idealizadora e produtora do projeto CIO desde 1997. Participa da cena noturna desde o início dos anos 90.

Como você vê a cena notuna hoje depois de tantos anos acompanhando seu desenvolvimento? O mainstream banaliza o underground, ou essas duas realidades podem coexistir?

Vejo a cena noturna em transição, de tempos em tempos as coisas se estaguinam, dá-se uma parada e depois as novidades aparecem com clubes e tendências musicais novas. É sempre um ciclo e acho que vai ser sempre assim.

Não acho que o mainstream banaliza o underground, eles já coexistem há muito tempo, o mainstream está sempre de olho no underground pois é onde ele se baseia pra tendências musicais, comportamentais e etc…!
Veja os empresários da noite, por exemplo, eles contratam os profissionais do underground para consultoria, direção artistica e pesquisa musical. Eles têm o dinheiro e o under a idéia!

***

Pejota Fernandes é DJ e dono do selo Rainbow Socks.

É possivel aprimorar o gosto musical e seduzir um público pouco interessado numa música eletrônica mais elaborada ou original, como acontece no mainstream brasileiro?

Bom, acho que o problema é bem complexo, mas é possível que haja, pelo menos, uma melhora…

Penso que, em primeiro lugar, precisamos ter canais de influência honestos. Quando falo em canais de influência me refiro aos DJs, clubs, rádios, revistas, enfim, todos os responsáveis por divulgar o universo da música eletrônica.

Um exemplo: Tem uma rádio popular em SP, que todos nós conhecemos, e que faz uma série de coletâneas de música eletrônica bagaceira com seu nome seguido de “tech”, e que jura que nessas coletâneas estão as MELHORES MÚSICAS TECHNO DO MOMENTO. Quem tem um pouco de cultura musical eletrônica, com certeza sabe que o que essa rádio faz está a anos luz de distância de ser uma coletânea de Techno, então por que essa rádio insiste em assinar seu cd dessa forma?! Porque o termo “Techno” agrega algo de alternativo, conceitual e diferente da música “jabá” que o público de rádio está acostumado a consumir (isso analisando a grosso modo) … e o público, que tem aquele veículo de comunicação como “um norte” para se informar acaba sendo enganado, porque essa rádio está botando a grana na frente de tudo.

Hoje temos a internet para os que realmente tem paciência e vontade de descobrir o que é música Techno, House, Trance, bagaceira e afins, mas ninguém seria obrigado a ficar buscando a verdade se ela estivesse presente aonde o público vai se abastecer culturalmente, como nas rádios, por exemplo. Portanto, eu acho que honestidade com o público é o primeiro passo.

Outra coisa importante é que esses canais de influência precisam de mais ousadia. Exemplo: Por que um club não se interessa em trazer uma atração internacional desconhecida e nova, mas que já mostra um trabalho muito bom?!
É porque essa atração não vai dar mídia, não vai encher pista, mesmo que seja algo incrível. Novamente estamos caindo na questão do “quanto vou lucrar com isso?”

Se não houver esse tipo de ação fica difícil levar algo de inovador, diferente e de qualidade para o público, consequentemente não temos como abastecer o público com coisas novas. Não estou querendo dizer que é necessário ser radical, mas sim ser equilibrado. Os clubs, revistas, rádios, DJs ou whatever, precisam analisar questões como essas, pois só assim será possível mudar alguma coisa.

Um público que sente estar sendo respeitado e cuidado vai sempre retribuir com sua fidelidade. Isso é uma regra que vale para a música eletrônica e para qualquer outra coisa.

***

Ozie Gheirart é vocalista da banda Dandi-Dracula, parceiro de Pedro Zopelar.

O que você acha da música estar quase sempre vinculada à cultura da celebração por tantos anos? – (Levando em consideração que a música que você produz é essencialmente Rock, e sua visão da música eletrônica é, de certa forma, externa).

Bem, eu prefiro contextualizar para ampliar a sua pergunta. A música em si é uma forma de celebração da vida.
E isso não quer dizer que só celebramos o que é bom: veja a marcha fúnebre, hinos de guerra, as viagens lisérgicas, a música clássica, anticristo, regional, etc. É sempre uma leitura da vida, do ritmo do que se vive, do som do que vive emite. Sem julgamentos, é a celebração in loco da vida. Somos seres naturais e culturais ao mesmo tempo.

O que você questiona, e eu concordo, é uma certa decadência dessa celebração. Daí, acho importante chamarmos a história para nos ajudar. Na chamada pós-modernidade, tudo veio a se confundir. Muitas desconstruções e poucas construções – muitos pensadores dizem que o século XX acabou na década de 1970. Tem um texto do Adorno, acho que de 1960, em que ele apontava o seu medo dos instrumentos elétricos, da perda da acústica e do ato de “ouvir” a música, do fetichismo e da perda da audição. Ele já pensava numa música de pano de fundo, da música de entretenimento. Apesar de ele pensar isso a partir da música erudita, já que ele era um músico, vamos tentar trazer isso para a música eletrônica porque ela está bem nesse bojo “pós-moderno”. Daí, eu prefiro pensar nela como a música do progresso humano, primeiro pela sua execução e depois pelas suas inéditas e infinitas combinações e possibilidades.

Até os anos 1990, paralelo a esse processo doente de industrialização, as máquinas tomaram lugares estratégicos na vida social! Eu confesso que me aborrecia com a Italo Disco! Eu vejo um encardido nessas “drags” góticas, porque sempre achei o Rock mais cheio de alma. Acho deprimente música de gênero! Mas não quero me aprofundar nisso. Os anos 90 foi a época da bagaça, mas depois, com a chegada forte do House, Techno etc., uma nova era surgiu… Lembro que freqüentava lugares como o Espaço Retrô e de lá íamos para o Hell’s, no Columbia. Tinha muito essa coisa de tribo e as pessoas discordavam da gente ceder a esse fervor da música eletrônica.
Muitos anos se passaram e ela se instituiu, mas hoje o cenário é de decadência, típico dessa época resumida que vivemos (da preguiça, do progresso) em que os DJs são fashionistas, pessoas vulgares nos bastidores dos mornos acontecimentos. Não tem mais movimento artístico envolvido, porque as pessoas se encantaram com as ferramentas, com os bastidores da técnica. Todo mundo dança igual, todo mundo perde horas para construir o personagem nas mídias de relacionamento! Vivemos numa época em que pessoas se orgulham de nunca ter lido um livro. Tem muita gente perdida na era dos excessos. E, o complicador é que, desvencilhados da história, pensam que o que fazem é fresco e digno de reconhecimento.

Voltemos a música. Ok, mas com o Rock também não foi assim? Não morreu e renasceu por várias vezes?
A renovação é sempre uma possibilidade revigorante, mas para isso temos que nos desprender da nostalgia, que também é uma volta!

Eu penso que a música eletrônica precisa se reinventar, porque ficou achatada para embalar uma elite burra e apática (veja que célebre, celebridade, celebração desfrutam da mesma etimologia), que se satisfaz com essa coisa comprada, consumida e epidérmica. E os artistas, por temer o fracasso, não deixam de atendê-los.

Mas eu acredito nas resistências! E, talvez assim, o underground volte a ser o que deveria, para os poucos que fazem alguma diferença.

Marco AndreólEscrito por Marco Andreól em 31 de janeiro de 2011

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